É ensaísta e filósofo brasileiro, pesquisador de tecnologias e consequências
socioambientais, com especial interesse na crítica da tecnologia. Autor dos
livros
Nesse artigo, investigaremos como acontece a intencionalidade no mundo biológico, quais as condições necessárias para sua manifestação, como os animais superiores lidam com ela objetivamente em seus acoplamentos estruturais com o meio, correlacionando-a (intencionalidade) enquanto fenômeno genuinamente biológico, com a dificuldade de instanciar inteligências conscientes e intencionais em sistemas cibernético-informacionais complexos e artificiais. Mais especificamente, referimo-nos a tentar fazê-lo -como defende o cognitivismo ortodoxo- em computadores, androides e robôs, por meio de arranjos de IA (Inteligências Artificiais). Vale destacar que esse problema da intencionalidade se vê intimamente relacionado a problemas que já discutimos em trabalhos anteriores (Inteligências artificiais e o problema do consciência; Inteligências artificiais e os limites da computação), no sentido de que, apenas um sistema ou ser biológico vivo é capaz de possuir essas três faculdades-propriedades importantíssimas ao mesmo tempo; a saber: consciência, intencionalidade e emoção.
In this article, we will investigate how intentionality in the biological world happens, what conditions are necessary for its manifestation, how the upper animals objectively deal with it in their structural couplings with the environment, correlating it (intentionality), as a genuinely biological phenomenon, with the difficulty of instantiating conscious and intentional intelligences in complex and artificial cybernetic-informational systems. More specifically, we refer to trying to do so -as it defends orthodox cognitivism- in computers, androids and robots, through AI arrangements (artificial intelligences). It is noteworthy that this problem of intentionality is closely related to problems we have already discussed in previous works (artificial intelligences and the problem of consciousness; Artificial intelligences and the Limits of computation), in the sense that, only a system or being a living biological is able to possess these three faculties-important properties at the same time; namely: consciousness, intentionality and emotion.
En este artículo, investigaremos cómo ocurre la intencionalidad en el mundo
biológico, qué condiciones son necesarias para su manifestación, cómo los
animales superiores la tratan objetivamente en sus acoplamientos estructurales
con el medio ambiente, correlacionándola (intencionalidad) como fenómeno
genuinamente biológico, con la dificultad de crear inteligencias conscientes e
intencionales en sistemas de información cibernética complejos y artificiales.
Más concretamente, nos referimos a tratar de hacerlo -como lo defiende el
cognitivismo ortodoxo- en ordenadores, androides y robots, a través de arreglos
de IA (inteligencias artificiales). Cabe destacar que este problema de
intencionalidad está estrechamente relacionado con los problemas que ya hemos
discutido en anteriores obras (
Muitas das importantes funções evolutivas da consciência são evidentemente
intencionais: os animais, por exemplo, têm sensações conscientes de fome e sede,
ocupam-se com discriminações perceptivas conscientes, envolvem-se em ações
intencionais conscientes e reconhecem conscientemente amigos e inimigos. Todos
esses fenômenos são intencionais e conscientes, e também essenciais para a
sobrevivência biológica
Passa, também, pela questão do
A intencionalidade só existe se houver um agente consciente que possua a referida intenção, uma subjetividade que busque ou faça o sentido ter valor objetivo em si mesmo, que avalie e modifique esse sentido, adaptando-o e significando-o constantemente. De modo que, sem agente, sem consciência, sem subjetividade, sem intenção -é claro e óbvio-, não poderá haver também intencionalidade.
Mesmo o conceito de intencionalidade em si só é relevante e acessível cognitivamente
se houver um sujeito intencional que conceitue essa importante propriedade-faculdade
biológica chamada
E, abordar a questão da intencionalidade, leva-nos ao fato irremovível de que não
podemos compreender a intencionalidade fora de um âmbito de subjetividade
intencional absolutamente biológica, que envolve uma série de outras questões também
de cunho biológico. Algo como um silogismo categórico clássico da lógica
aristotélica, expresso numa noção bem formulada:
A notação lógica desse raciocínio formal é a seguinte: Todo organismo biológico é um
sujeito. Todo sujeito é intencional. Logo, todo organismo biológico é intencional.
Em linguagem simbólica grafar-se-ia assim:
Em minha opinião, não é possível apresentar uma análise lógica da Intencionalidade do mental em termos de noções mais simples, uma vez que a Intencionalidade é, por assim dizer, uma propriedade fundamental da mente e não uma característica logicamente complexa construída a partir da combinação de elementos mais simples. Não existe uma posição neutra a partir da qual possamos investigar as relações entre estados Intencionais e o mundo para depois descrevê-las em termos não-intencionais. Qualquer explicação da Intencionalidade, portanto, tem lugar nos limites dos conceitos intencionais.
Observemos que, como sugere
minhas experiências conscientes, ao contrário dos objetos das experiências, são sempre em perspectiva. São sempre a partir de um ponto de vista. Mas os objetos em si não têm ponto de vista. Perspectiva e ponto de vista são mais óbvios para a visão, mas certamente são também características de nossas outras experiências sensoriais. Se toco a mesa, experimento-a apenas sob determinados aspectos e a partir de uma certa posição espacial. Se ouço um som, ouço-o unicamente de uma certa direção e ouço determinados aspectos dele. E assim por diante.
E aqui chegamos a um ponto interessantíssimo que merece ser apreciado com atenção.
“Se tento observar a consciência de outro”, informa-nos
Tratamos -atentemos- de corpos biológicos que possuem cérebros, que exibem inteligência e consciência em níveis elevados, e que -por finalidade- produzem subjetividade e intencionalidade, pois precisam delas para sobreviver, ou seja, para poder performar no mundo e no ambiente com um mínimo de eficiência e propriedade, há que se ter intencionalidade. Não existem dicotomias ou paradoxos aqui.
Sem maiores embargos, inteligência, consciência, subjetividade e intencionalidade -sustentamos-, são todas adaptações bioevolutivas direcionadas para os processos decisivos e fundamentais da sobrevivência de cada ser individual. Está na literatura. E todo animal inteligente e consciente é necessariamente também um agente intencional, não há como fugir disso.
Um pequeno primata que se lança de um galho a outro agilmente em busca de uma fruta, uma lebre que foge de um gavião, um gato que se esquiva agilmente de um cão mal-humorado, um rato que foge de um gato; todos esses são comportamentos necessariamente intencionais, inteligentes, conscientes, que provocam emoções e sentimentos. Para que tais fenômenos possam ocorrer objetivamente, há que se ter necessária e concomitantemente o sujeito inteligente, a consciência de si em relação ao momento, ao lugar, há que se ter uma intenção consciente de agir, e a ação coordenada de um corpo saudável que gerará os comportamentos mais apropriados e eficientes em relação ao meio ambiente dinâmico que o contêm.
Enfim, há que se ter um organismo completo e articulado dialogando com o entorno, com
o clima, com seus iguais, concorrentes, predadores e assim por diante. A locomoção,
alimentação, o acasalamento, a luta; todos esses são comportamentos intencionais e
biológicos. Difícil mesmo é refutar. Além disso, como nos informa
muitas das importantes funções evolutivas da consciência são evidentemente intencionais: os animais, por exemplo, têm sensações conscientes de fome e sede, ocupam-se com discriminações perceptivas conscientes, envolvem-se em ações intencionais conscientes e reconhecem conscientemente amigos e inimigos. Todos esses fenômenos são intencionais e conscientes, e também essenciais para a sobrevivência biológica.
E, aqui, leiamos “biológica” como a lógica organizacional da vida. E a estruturação
dessa vida biológica inteligente se dá por meio de organismos que possuem cérebros,
e, como escreve
Manifestações mais bioquímicas e físicas do que transcendentais e místicas, mais
objetivas e causais, do que misteriosamente desconhecidas e indeterminadas.
Todavia -não nos enganemos- há problemas aparentemente insolúveis que insistem em nos
assolar, como consta em
Por um lado, podemos ver a mente simplesmente como o desempenho do cérebro, mas por outro, devemos admitir que cada chamada atividade mental do cérebro não é necessariamente rastreável a alguma estrutura cerebral isomórfica, enquanto que, dentro de certos limites, podemos localizar a estrutura cerebral envolvida, digamos, a contração de um determinado músculo.
Só porque um modelo da mente não pode deixar de lado o cérebro como o motor da nossa consciência, raciocínio, tomada de decisão, e assim por diante, a tentativa de reproduzir o comportamento mental artificialmente está, se concebida como uma empresa que vê a mente como um sistema autônomo, sem dúvida destinada a falhar. Ou melhor, a reprodução de um processo mental em um programa de computador, por exemplo, através de cálculos ou raciocínio, pode ser bem-sucedido não porque ele captura a forma complexa de raciocínio dos seres humanos, mas porque reproduz os resultados finais do funcionamento do cérebro.
“Assim, na medida em que o problema da reprodutibilidade do cérebro está em causa”,
informa-nos
Mas, de toda maneira e também à revelia de nossa ignorância sobre o funcionamento
inconsútil do cérebro, o ato de pensar em algo, por exemplo, necessariamente requer
intenção. Se -por exemplo- penso em refletir sobre
Desejo explorar tal problema, e me agrada imaginar que meus textos podem ajudar outras pessoas a compreender melhor o assunto. E a intencionalidade, seja em maior ou menor grau, está absolutamente presente nesse tipo de comportamento, e todas as demais formas de vida também exercem de alguma maneira a sua intencionalidade no dia a dia, assim como nós. A ação de uma planta, embrenhada em meio à profusão de muitos outros vegetais, que realiza um fototropismo sinuoso -inclinando-se na direção da luz-, também poderia, num certo grau de complexidade bem menor, ser considerada uma espécie de ação intencional.
Ela identifica sensivelmente a direção da fonte de luz, e, como precisa dela,
inclina-se fisicamente em sua direção, em busca de uma posição que lhe permita
recebê-la em maior quantidade e qualidade. É claro que alguns dirão o contrário, mas
aqui -enquanto não houver provas- trata-se de matéria de crença e opinião. Mas,
retornando aos seres complexos com cérebros também complexos e explícita
os fenômenos mentais intencionais fazem parte da nossa história de vida natural e biológica. Sentir sede e ter experiências visuais, desejos, medos e expectativas faz parte da história de vida biológica de uma pessoa tanto quanto respirar, digerir e dormir. Os fenômenos intencionais, como os outros fenômenos biológicos, são características reais intrínsecas de certos organismos biológicos, do mesmo modo que a mitose, a meiose e a secreção da bile são características reais de certos organismos biológicos.
Quanto a isso, ou seja, a questão da intencionalidade em animais complexos,
Humanos, cachorros e chimpanzés recebem estímulos perceptivos por meio dos receptores sensíveis visuais, táteis, auditivos, olfativos e outros; todos eles enviam os sinais produzidos por esses estímulos para o cérebro, onde são processados; e, por fim, os processos cerebrais resultantes provocam respostas motoras na forma de ações intencionais como: socializar com outros animais coespecíficos, comer, brincar, lutar, reproduzir, educar os filhotes e tentar permanecer vivo. Dada a continuidade neurobiológica, parece fora de questão supor que somente os humanos tenham intencionalidade e pensamento.
Quem assim pensa, ou seja, que apenas nós possuímos tais faculdades, certamente está contaminado com um antropocentrismo tão desmedido e uma insensibilidade tão exacerbada, que seu juízo e razão já foram contaminados e comprometidos, de modo que seria difícil querer com eles tentar argumentar.
Como já mencionado anteriormente em artigo de nossa lavra (
Afirma-se às vezes que a mente com seus estados intencionais é algo abstrato,
como um programa de computador ou um fluxograma; ou que os estados mentais não
têm natureza
“Mas, parafraseando Darwin” acrescenta
Não tenho a menor dúvida de estar efetivamente percebendo objetos familiares,
cadeiras e mesas, quadros, livros e flores que mobíliam a minha sala; estou,
portanto, convencido de que existem. Reconheço, de fato, que às vezes os
sentidos enganam, mas isso não me leva a suspeitar de que as minhas percepções
sensórias não sejam, em geral, dignas de confiança, ou mesmo que possam estar me
enganando neste exato momento. E esta não é, acredito, uma atitude excepcional.
Creio que, na prática, a maior parte das pessoas concorda com John Locke em que
‘a certeza da existência das coisas
Assim sendo, argumentamos nós, se despimos a faculdade-propriedade da
Daí surge toda má sorte de crenças e mitos, dicotomias e paradoxos, que por si e
Mas, se seguimos o conselho de
Creio que, se pudéssemos esquecer a tradição [e aqui o autor se refere principalmente à dualidade cartesiana mente-cérebro], a questão sobre o lugar desses estados [mentais] na natureza teria uma resposta óbvia. Eles são estados físicos de certos sistemas bioquímicos, a saber, os cérebros. Os estados mentais, com todas as suas características gloriosas ou enfadonhas -consciência, intencionalidade, subjetividade, alegria, angústia etcetera- são exatamente como sempre soubemos que são.
Enfim, eles são fenômenos biológicos. Como nos ensina
Enfim, algo que pretende ignorar quase quatrocentos anos de história e ciência
natural sobre os organismos vivos. Quanto a isso,
sua influência foi identificada e descrita por (entre outros) Bickhard e Terveen
(1996), Dennett (1991), Dreyfus (1991), Dreyfus e Dreyfus (1988), Fodor (1983),
Harvey (1992), Haugeland (1995/1998), Lemmen (1998), Shanon (1993), Van Gelder
(1992),
Todos esses autores supracitados identificaram uma similitude nas diversas teorias
cognitivas, como nos explica
Este quadro, que eu chamo de psicologia cartesiana, é definido por [...] princípios explicativos que capturam as maneiras pelas quais vários fatores cruciais estão localizados e jogados fora no próprio relato da mente de Descartes. Esses fatores são o sujeito - dicotomia do objeto, representações, razão generalícia, o caráter da percepção, a estrutura organizacional da ação inteligente perceptualmente guiada, o corpo, o ambiente e a temporalidade.
Todavia, como escreve
Parece que estamos no meio de uma virada anticartesiana na ciência cognitiva. As primeiras sugestões desta transformação nascente no campo devem ser encontradas em alguns exemplos-chave de pesquisa de sistemas dinâmicos [...]. No entanto, estes são pontos de pressão dispersos na hegemonia cartesiana. Ir além do cartesianismo na ciência cognitiva requer uma reconstrução mais fundamental nos fundamentos filosóficos da disciplina.
Para ilustrar essa questão da
Nós (eu e minha esposa) eventualmente já os alimentavámos, mas fato é que
recentemente estabeleceu-se um padrão de comportamento
Eu, por minha vez, interrompo momentaneamente a pesquisa e a redação acadêmica, para
apanhar na cozinha uma ou duas bananas e ir servir aos macaquinhos, fazendo também
-por minha parte- vocalizações humanas em que tento expressar a minha amistosidade e
afeto em relação a eles, que por sua vez, é também intencional. Ao ouvirem a minha
voz, e também devido ao hábito que se estabeleceu depois da décima ou vigésima vez
que isso aconteceu, mesmo ainda distantes, em árvores das redondezas e da
vizinhança, era possível observar esses pequenos animais se lançando impetuosamente
de uma árvore a outra, às vezes a dois ou três metros de distância entre galhos,
para poderem chegar mais rápido ao seu objetivo
É o que John Searle chama de relação entre “estados intencionais” e “condições de
satisfação”. Em suma, sustenta
resumindo a discussão da intencionalidade, há três características que precisamos de ter em conta na nossa análise do comportamento humano: em primeiro lugar, os estados intencionais consistem num conteúdo em certo tipo mental. Em segundo lugar determinam as suas condições de satisfação, isto é, serão ou não satisfeitas, dependendo do fato de se o mundo se harmoniza com o conteúdo do estado. E, em terceiro lugar, por vezes eles fazem as coisas acontecer, mediante a causação intencional para produzir uma harmonia, isto é, para produzir o estado de coisas que representam, as suas próprias condições de satisfação.
A primeira característica sugerida por Searle acerca do conteúdo mental intencional foi alcançada e poderia ser resumida da seguinte forma: “queremos alimentar os macacos com bananas”, de nossa parte, e da deles “adoramos bananas e queremos chegar o quanto antes na distribuição do referido alimento”.
A segunda característica certamente também foi alcançada, já que nossos estados mentais intencionais não só encontraram condições de satisfação, como também se harmonizaram plenamente com o mundo, para usar os termos desse autor. E o mesmo pode ser dito igualmente da terceira característica proposta, já que os estados mentais intencionais dos macaquinhos e os nossos fizeram as coisas acontecerem e se harmonizaram não só entre si, mas também com o mundo.
Notemos também que a
é preciso notar que, apesar de termos adquirido um brilho verbal muito desenvolvido, continuamos a utilizar os mesmos sons básicos instintivos emitidos pelos outros primatas -grunhidos, gemidos e guinchos. As nossas expressões sonoras inatas mantêm-se, conservando mesmo papéis importantes. Não só providenciam as bases vocais com que construímos o nosso arranha-céu verbal, mas continuam a manter direitos próprios, como dispositivos de comunicação típicos da espécie. Ao contrário do que sucede com as expressões verbais, os sons básicos surgem sem treino preliminar e têm o mesmo significado, seja em que cultura for. O grito, a lamúria, a gargalhada, o guincho, o gemido e o chorar rítmico transmitem as mesmas mensagens, seja a quem for e seja onde for. Tal como os sons emitidos pelos outros animais, eles se relacionam com os estados emocionais básicos e dão-nos a impressão imediata das motivações de quem os emitiu. Nós retivemos igualmente as nossas expressões instintivas, o sorriso, o riso, o franzir de sobrancelhas, o olhar fixo, a cara de pânico e a face zangada. Essas expressões também são comuns a todas as sociedades, apesar da aquisição cultural de muitos gestos e maneirismos.
Além disso, para o horror dos antropocêntricos e logocêntricos, e atordoamento dos linguistas e mecanicistas fisicalistas, há flagrantemente nessa relação por nós relatada efetiva comunicação, ainda que cada um se expresse através de vocalizações também intencionais diferentes -à sua maneira e na sua linguagem-, e é possível dizer que ambos conseguimos alcançar nossos objetivos intencionais.
Ou seja, eu experimentei o prazer de alimentar esses delicados e astutos seres que
habitam as matas, e eles, por sua vez, emitindo sons e me olhando nos olhos, como
quem deseja entender a minha
Diante de tudo isso, como negar que esses seres sejam inteligentes, conscientes e
intencionais? A mãe miquinho que
Notemos que esse aporte reflexivo simples da biologia naturaliza o conhecimento,
tornando-o mais acessível, e desembaraçando-o de quaisquer confusões teóricas e/ou
conceituais. O metafísico não pode se insubordinar à física. As conjecturas não
podem atropelar os fatos. Deslindar e tentar compreender o funcionamento da mente
consciente e intencional, seja humana, seja animal, não pode consistir em ignorar o
fato manifesto de sua ontologia própria, nem muito menos ainda na imposição de
sistemas e regras arbitrárias. Num só termo, nossas teorias devem se adaptar à
realidade, e não o contrário. Isso é o que manda o bom senso.
Consideremos o caso de um animal, um leão, digamos, que se move de modo
aparentemente irregular em meio ao mato alto. O comportamento do leão será
explicado se dissermos que ele espreita um antílope, que é a sua caça. O
comportamento de espreitar é causado por um conjunto de estados intencionais:
ele está
Mas, mesmo que peguemos exemplos de animais menos, muito menos complexos que os que
utilizamos como exemplo até aqui, ainda assim, poderemos encontrar níveis e graus de
inteligência e intencionalidade.
Entretanto, se
Montaigne ‘é fundamentalmente um monista, ou seja, todas as faculdades psíquicas existentes nos animais são as mesmas que existem no homem. Para Montaigne, os animais julgam, comparam, raciocinam e agem da mesma forma que o homem; o mesmo e ainda melhor’. Essas ideias certamente posicionam Montaigne como um precursor filosófico da virada filosófica para os animais não humanos.
A percepção de que os animais são seres vivos como nós e não máquinas, como queria
Descartes ou ainda quer Dennett, é um dado empírico observável e totalmente
comprovável. Quaisquer tentativas de excluí-los dessa qualificação -segundo o nosso
rude entendimento- seria uma mera arbitrariedade impositiva, sem nenhum valor
científico ou acadêmico. Além disso,
para Peirce, a continuidade entre seres humanos e não humanos não é uma questão de continuidade entre seres com e sem mentes, mas um entre organismos de poderes mentais menos complexos e mais complexos. Os animais têm mentes, ‘por mais estranhas que sejam, como as medusas, e até mesmo o próprio organismo microscópico do monge, cada um tem algo como uma mente com as duas potências mentais fundamentais’ do Sentimento e do Esforço (CSP Papers, ms 659, G2-G3).
Em suma, embora o sentimento seja acessível apenas àquele que o experimenta, podemos e devemos inferir, por analogia, que outros, animais e seres humanos, têm sentimentos exatamente como nós. Precisamos reconhecer que nossas suposições sobre os modos de experiência e pensamentos dos outros requerem o mesmo tipo de inferência.
E se engana quem crê que comportamento inteligente e intencional se restringe a
animais complexos que possuem cérebro. Hoje, diante de novas pesquisas, sabemos que
plantas também tem comportamentos intencionais e inteligentes, e que isso se
manifesta de diversas formas. Talvez um dos exemplos mais impressionantes desse tipo
de intencionalidade presente em vegetais, seja o que nos oferece
Há cerca de 40 anos cientistas notaram algo interessante na savana da África. As
girafas comem a folhagem da
Notemos que aqui, nesse único exemplo, é possível identificar manifestações de
intencionalidade diversas, e em níveis igualmente diferentes: tanto as árvores como
as girafas se comportam de maneira inegavelmente inteligente e intencional, e, além
disso, as acácias também exibem comportamentos típicos de inteligências coletivas,
já que trabalham em grupo. Ou seja, são várias árvores trabalhando em conjunto e em
cooperação para uma única finalidade comum, a saber, defenderem-se das famintas
girafas. Ademais, como lemos em
Uma única árvore não forma uma floresta, não produz um microclima equilibrado; fica exposta, desprotegida contra o vento e as intempéries. Por outro lado, muitas árvores juntas criam um ecossistema que atenua o excesso de calor e de frio, armazena um grande volume de água e aumenta a umidade atmosférica - ambiente no qual as árvores conseguem viver protegidas e durar bastante tempo. [...] Cada árvore é valiosa para a comunidade [de árvores] e deve ser mantida viva o máximo possível. Mesmo os espécimes doentes recebem ajuda e nutrientes até ficarem curados. E uma árvore que no passado auxiliou outra pode no futuro precisar de uma mãozinha. Quando as enormes faias se comportam dessa forma, me fazem lembrar de uma manada de elefantes. A manada também cuida de seus membros, ajuda os indivíduos doentes e fracos e reluta até em deixar os mortos para trás.
Por outro lado, no que se refere à IA (Inteligência Artificial) e os computadores que
‘rodam’ seus sofisticados programas -que junto com a biologia e a bioevolução
compõem justamente o núcleo de nosso objeto de estudo desta feita-, torna-se
importante frisar que o problema da intencionalidade está intimamente ligado ao
problema da consciência, que por sua vez está também ligado à questão da
subjetividade sensível de um agente inteligente, que certamente se liga ao problema
da emoção, cujos processos intrínsecos vinculam-se inquebrantavelmente a
manifestações de nível superior de cérebros biológicos vivos, que são parte de
organismos complexos formados por células e tecidos, e assim por diante. Daí a
dificuldade em tentar reproduzir a intencionalidade em sistemas artificiais. Além
disso, como nos informa
no computador comercial, como já vimos, os símbolos, as frases, a representação,
a informação e o cômputo são todos relativos ao observador. Do ponto de vista
intrínseco, o computador é somente um circuito eletrônico complicado. Para que o
computador satisfaça a restrição da realidade causal, temos de recorrer a
programadores, planejadores e usuários que atribuem uma interpretação ao
Mas, como escreve
as pessoas são perfeitamente capazes de fazer inferências lógicas. Elas o fazem,
segundo a explicação, seguindo regras das quais são totalmente inconscientes e
que nem sequer poderiam formular sem ajuda profissional. Assim, por exemplo, as
pessoas fazem inferências usando o
Sim, pois temos internalizadamente uma perspectiva de mundo, uma noção histórica, uma
conceituação e valoração do que seja bom, belo, gratificante, aprazível, louvável e
assim por diante. Assim como temos, igualmente, a lógica completamente internalizada
em nossas ações. Todavia, indagamos juntamente com
Mas como implantar algum valor em um agente artificial de modo que ele venha a buscar esse valor como seu objetivo final? Em qualquer domínio mais complicado que um jogo da velha, existem muitos estados possíveis (e histórias possíveis) para que uma enumeração exaustiva seja factível. Assim, um sistema de motivações não pode ser especificado de forma tabular.
Mas não nos enganemos, pois existe muito esforço envolvido nesse projeto de
instanciar uma intencionalidade de máquina em sistemas cibernético-informacionais de
IA. Muitas são as abordagens em relação ao
Lembrando que, como escrevem
de um modo geral, a intencionalidade tem duas vertentes: em primeiro lugar, a intencionalidade inclui o modo como o sistema [vivo] interpreta a forma como o mundo é (especificado em termos do conteúdo semântico de estados intencionais); em segundo lugar, a intencionalidade inclui o modo como o mundo satisfaz ou não consegue satisfazer esta interpretação (especificada em termos de condições de satisfação e estados intencionais). Poderíamos então dizer que a intencionalidade da cognição como ação corporalizada consiste primeiramente no caráter direto da ação.
Dito de um modo mais simples, a cognição -em última instância e no extremo- visa a ação inteligente e intencional no mundo ontofenomênico. Visa um performar mais efetivo e eficiente no ambiente.
Avançando um pouco mais nessa visão sistêmica dos organismos vivos e seus meios
circundantes, notemos juntamente com
há dois domínios no âmbito dos quais podemos descrever qualquer sistema cognitivo: por um lado podemos debruçar-nos sobre a estrutura do sistema descrevendo-o como sendo composto por vários subsistemas, etc., e, por outro lado podemos debruçar-nos sobre as interações comportamentais do sistema, descrevendo-o como uma unidade capaz de várias formas de acoplamento.
De modo que, para concluir essa breve visão sistêmica dos organismos vivos -com a
qual nos alinhamos completamente-, e conseguir também acentuar o âmbito da cognição
como algo importante que acontece somente por meio do acoplamento estrutural dos
indivíduos vivos no ambiente, vejamos essas definições de
Mas -é bom que se diga-, as nossas reflexões e também as de
O que significa dizer, em termos bem gerais, que vigoram outras crenças, outros
modelos e outros paradigmas. E essas crenças e paradigmas, que comparam máquinas a
organismos vivos, tiveram origem -também- nos primeiros tempos da cibernética.
Vejamos, por exemplo, a posição de McCulloch, nessa citação de
Nesse sentido, fazemos nossas as palavras de
O cérebro tem sido comparado a um computador digital porque o neurônio, como um
comutador ou válvula, ou completa ou não completa um circuito. Mas neste ponto a
semelhança termina. O comutador do computador digital tem um efeito constante, e
seu efeito é grande em proporção ao
Já em um sistema cibernético-informacional, como um computador comercial, por exemplo, um dígito errado ou perdido pode comprometer toda a computação que se está a efetuar. Num sistema binário e determinístico como esse, regido pela lógica matemática, basta apenas um algarismo perdido ou imprecisamente grafado, para que toda a operação computacional esteja absolutamente arruinada.
Além disso, como já vimos no início desse artigo, o problema da intencionalidade
evoca -em relação às IA- questões da seguinte natureza: só haverá intencionalidade
se houver um agente, um ente, enfim, um ser vivo com subjetividade própria, que,
nesse sentido, nada mais é do que uma visão própria em primeira pessoa do mundo em
que ele mesmo está inserido. Para haver intenção tem de haver necessariamente um
os estados e processos mentais conscientes têm uma característica especial, não encontrada em outros fenômenos naturais, a saber, a subjetividade. É esta característica da consciência que torna seu estudo tão teimosamente desafiador aos métodos convencionais da pesquisa biológica e psicológica, e mais confuso para a análise filosófica.
Antes de concluir, é bom lembrar que -não em todos, mas em muitos sentidos- até
bactérias podem ser consideradas seres minimamente intencionais e cognitivos,
enquadrando-se nas três respostas apresentadas como condicionais para a cognição por
Além disso, elas também são as responsáveis pela produção da nova geração de
bactérias. Vejamos o que nos oferta
[A bactéria]
Enfim, a
Quando você encontra um polvo em um ambiente natural, se aproxima dele e para à sua frente, pelo menos em algumas espécies o polvo estenderá um braço para inspecionar você. Frequentemente, um segundo braço virá em seguida, mas sempre é um único que vem primeiro, enquanto o animal observa. Isso sugere um tipo de intencionalidade, uma ação guiada pelo cérebro.
Ademais, conclusivamente, o computador ou robô que expressar algum tipo de
comportamento inteligente não terá
A inteligência não pode ser medida com base no comportamento externo do robô, androide ou computador que construirmos, e sim por uma análise lógica de seu meio interno, sua constituição, sua história e seu hipotético acoplamento estrutural com a realidade. Somente um sistema tão complexo como o cérebro biológico vivo poderá exibir comportamentos que possam ser classificados como genuinamente inteligentes. E, em relação a isso, estamos ainda muito longe de consegui-lo. Para saber se será possível ou não uma intencionalidade cibernético-informacional, faz-se necessário aguardar.
Antes de mais nada, é preciso dizer que computadores, androides e robôs são artefatos tecnológicos, e que artefatos tecnológicos de forma alguma possuem intencionalidade própria. Isto parece ser um ponto acordadamente pacífico. Mas, uma hipotética intencionalidade artificial talvez -ao contrário da subjetividade e do agente- possa não ser um problema tão grande assim em termos de realização e programação de software, por exemplo -é claro, desde o ponto de vista imaginário do robô, e do nosso, que o antropomorfizamos-, pois ela poderia ser simulada com menos dificuldades por meio de rotinas e protocolos relativamente simples, já que, na prática, a finalidade útil da máquina quase se funde com o que seria a sua intencionalidade hipotética, tendo em vista que externamente a intencionalidade dele (robô) se expressaria como cumprimento da função e execução do que lhe foi programado.
O que queremos dizer é que aos nossos olhos humanos, a intencionalidade é extremamente complexa, cheia de nuances e motivações múltiplas, absolutamente repleta de ponderações e raciocínios abstratos complexos -ainda que, como alguns autores apontem muito bem, muito do que fazemos seja inconsciente-, o que na prática nos permite interagir e performar num mundo em constante movimento e transformação, ações e funções que necessariamente requerem uma mente consciente para poderem se organizar e manifestar em pura complexidade, transformando-a em intencionalidade, ou seja, em comportamento inteligente.
De modo que seria crível determinar para o sistema que sua intencionalidade passe, necessariamente, pela execução à risca de seu programa de finalidade objetiva. Todavia, como nos referimos a máquinas e sistemas de IA, onde se pretende justamente que a máquina seja um agente artificial relativamente autônomo, inspirada em nossa própria autonomia, e que ainda exprima um comportamento minimamente consciente, a coisa toda muda de figura. Notemos que a intencionalidade -como vimos- depende de um agente consciente, pois é justamente esse agente que possuirá intencionalidade.
Mas, ainda que possa parecer absurdo, extrapolemos o momento atual, e imaginemos um
futuro relativamente próximo, em que máquinas com diversos níveis e graus diferentes
de consciência e intencionalidade artificiais estarão interagindo conosco
socialmente, e pensemos no que seria importante. Intencionalidade consciente -como
sabemos- tem a ver com livre arbítrio, e livre-arbítrio diz respeito a valores e
significados. A pergunta premente num contexto assim seria: o que regerá essas
relações? Que tipo de código ou lei normatizará tal interação social? As Três Leis
da Robótica
embora tendemos a acreditar que percebemos a realidade, o fato é que os qualias gerados em nossos cérebros estão longe de ser uma representação verdadeira do mundo real. No entanto, geralmente a nossa experiência consciente do mundo revela-se altamente confiável em termos de tarefas diárias.
A ideia basal parece ser associar ações e comportamentos que assumimos -em tese-
inconscientemente, como se fizéssemos numa espécie de modo automático -utilizando o
tipo de metáfora maquínica que nós mesmos criticamos-, de modo que fosse possível
replicar artificialmente.
em suma, o mundo é interpretado pelo sujeito de tal forma que é vantajoso para seus objetivos. A definição intuitiva anterior da percepção consciente não parece ser suficiente para construir um modelo detalhado de uma máquina consciente que inclua aspectos fenomenais.
A realidade da consciência, de acordo com isso, seria uma interpretação, e
interpretação é interpretação de percepções, significados, sentidos, qualidades. E,
em se tratando de fenomenologia, a própria problematização nos remete novamente à
questão dos
A ideia é que haveria um homenzinho dentro de nossas cabeças, de nossos cérebros, que leria e interpretaria esses símbolos.
São essas as Três Leis da Robótica concebidas pelo escritor de ficção científica
Isaac Asimov: 1) Um robô não pode prejudicar um ser humano ou, por inação,
permitir que um ser humano sofra algum dano. 2) Um robô deve obedecer às ordens
que lhe são dadas por seres humanos, exceto quando tais ordens conflitarem com a
Primeira Lei. 3) Um robô deve proteger sua própria existência, contanto que tal
proteção não entre em conflito com a Primeira ou com a Segunda Lei (
Metaforicamente porque já existem experimentos com implantes neurais que permitem
a amplificação do som da própria atividade neuronal, o que vale dizer, os ruídos
dos disparos dos neurônios, da atividade cerebral e das tempestades neuronais,
como consta em